Objeto
Atuamos sobre três escalas da produção do tecido edificado: configurações de parcelamento do solo, morfologias espaciais na edilícia de base — os tipos de edificações mais difundidos, como habitações, comércios e oficinas de pequeno porte —, e sistemas construtivos vernáculos.
A fundação e o crescimento de núcleos urbanos de finais do Antigo Regime até os primórdios da industrialização apresenta um panorama de ações descentralizadas, com reduzida tutela do Estado, e amparado em tradições duradouras. Esse panorama revela o emprego de formas de parcelamento do solo, tipos edilícios e técnicas construtivas capazes de atender, ainda que perpetuando desigualdades, a segmentos diversos do processo de modernização das cidades.
Avançamos a hipótese de que as práticas construtivas e urbanísticas vigentes de meados do século XVIII ao início do XX configuram tradições edilícias com características de ordem emergente. A construção gradual do ambiente urbano, seja na forma de freguesias, vilas operárias, bairros informais ou planejados, constitui um substrato técnico e processual pouco reconhecido, situado à margem dos grandes projetos de reforma e “embelezamento” urbano da primeira República e do Estado Novo.
Argumentamos que a persistência dessas tradições edilícias, frente às transformações de ordem político-econômica e à progressiva introdução de processos industrializados na cadeia produtiva da construção civil, evidencia qualidades de resiliência e adaptabilidade ao longo do tempo e perante diversas condições de adensamento urbano. Tais qualidades oferecem respostas possíveis à crise ambiental e urbana da atualidade, em particular no que diz respeito à otimização do binômio parcelamento urbano–tipologia edilícia para maior flexibilidade funcional e adaptabilidade ao longo do tempo, bem como à inclusão de estratégias e agentes de pequeno porte no panorama da sustentabilidade ambiental.
A análise do desempenho das tradições edilícias, seja no tocante à resiliência funcional e espacial, seja quanto a indicadores ambientais e energéticos, é atualmente obstada pela carência de documentação e sistematização do seu acervo construído. A tentativa de validação da hipótese oferecida acima deve proceder, portanto, inicialmente compilando um corpo documental representativo dos produtos e processos designados como tradicionais, para então formular um sistema de indicadores e métricas de resiliência. O conceito de resiliência urbana tem sido implementado, via de regra, com respeito à recuperação após desastres naturais, ou ainda a aspectos socioeconômicos alheios aos processos produtivos do ambiente construído. Propomos, outrossim, proceder por analogia, identificando a resiliência de tradições construtivas diante dos cambiantes cenários cultural, político e tecnológico. Para tanto, estipulamos os objetivos a seguir.
Objetivos
- Objetivo geral
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Realizar um inventário de práticas construtivas vernáculas e padrões arquitetônicos vigentes no mundo luso-brasileiro da segunda metade do século XVIII à primeira metade do XX que sejam representativos de sistemas dotados de ordem emergente.
- Objetivos específicos
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Estabelecer um protocolo de boas práticas em levantamento arquitetônico e fotogrametria digital por meio de equipamentos de baixo custo e software livre.
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Conceituar ontologias de elementos espaciais e componentes construtivos históricos, aptas a serem representadas e analisadas em modelos HBIM (Historic Building Information Modeling) e SIG (Sistemas de Informações Geográficas).
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Compilar tipologias de formas de parcelamento do solo, de padrões arquitetônicos e de sistemas construtivos organizadas de modo a demonstrar suas distribuições regionais e genealogias evolutivas.
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Estabelecer um sistema de indicadores para avaliar a resiliência de tipos edilícios e de práticas construtivas no tempo e no espaço em contextos de transformação gradual das condicionantes culturais, políticas e técnicas.
Justificativa
A resiliência da gestão urbana tem recebido, ao longo das últimas décadas, crescente destaque na literatura acadêmica e na formulação de recomendações políticas por parte de entidades supranacionais e não governamentais. A bibliografia sobre este assunto tem se concentrado, porém, seja em medidas preparatórias para desastres naturais, seja em resultados de longo prazo nos âmbitos socioeconômico, sanitário, energético, etc., diretamente mensuráveis. A produção do ambiente construído é abordada, nesse espectro, como uma atividade-meio à qual compete, mormente, pôr em prática inovações tecnológicas e gerenciais capazes de atingir os resultados pretendidos.
Tal visão implica, todavia, a mediação de processos que por sua natureza são pouco resilientes: uniformização administrativa e otimização de cadeias industriais de ponta. Ambas estas categorias de processos são fortemente sujeitas a rupturas de cadeia ou a falhas de acesso, não apenas em contextos de desastres e calamidades, mas também, ou sobretudo, em condições prolongadas de depressão econômica, de dificuldades no aprovisionamento em produtos e energia, ou ainda de desigualdade socioeconômica persistente nas escalas interregional ou mesmo local.
Outrossim, a atual concepção de sustentabilidade como um “alvo em movimento” — passível não apenas de aprimoramento nos resultados alcançados, mas também de expansão e aprofundamento nas próprias expectativas estabelecidas pelos indicadores de desempenho — sugere atenção a todas as cadeias de processos produtivos no ambiente edificado. O deslocamento do “alvo” da sustentabilidade urbana, entendido sob todos os seus aspectos — ambiental, social, cultural e econômico — adquire, assim, a forma de uma ampliação de horizontes para a diversidade de práticas e soluções, mais do que de um vetor linear no sentido de um conceito unívoco de “progresso”.
Os ganhos em otimização e eficiência em sistemas padronizados e centralizados — o vetor singular de progresso — resultam em fragilidade das cadeias produtivas. Esta relação de custo-benefício entre otimização e fragilidade é demonstrada pelas dificuldades que as indústrias de equipamentos hospitalares — cadeias de alta complexidade requerendo insumos muito específicos, frequentemente oriundos do comércio exterior — e os governos centralizados encontraram em responder à pandemia da Covid–19. A recente crise sanitária global evidencia a necessidade de tais indústrias de alta complexidade e sistemas normativos centralizados serem suplementados por cadeias produtivas locais e processos decisórios descentralizados.
Na construção dos tecidos urbanos no Brasil, de resto, a atuação à margem da tutela estatal e o recurso a saberes vernáculos, por parte de um universo fragmentado de agentes autônomos, caracterizam grande parte do volume edificado tanto na atualidade quanto em todo o processo formativo da cultura luso-brasileira. Em vez de enxergar essa realidade como um sintoma de “exclusão” tecnológica e normativa, ou como uma “falha de mercado”, o conceito de horizonte alargado da sustentabilidade nos permite encontrar, nessa descentralização, fatores de resiliência tanto dos processos produtivos do ambiente edificado, quanto da forma urbana e edilícia resultante desses processos. Mais ainda, observar a construção vernácula numa perspectiva histórica oferece panoramas alternativos às contingências do contexto econômico, produtivo e normativo da atualidade.
Metodologia
Os objetivos desta pesquisa implicam uma sucessão de etapas consistindo em documentar, classificar e analisar vestígios materiais e registros gráficos da construção vernácula luso-brasileira de meados do século XVIII a meados do XX. O paradigma do Historic Building Information Modeling (HBIM) e os Sistemas de Informação Geográfica (SIG) formarão a espinha dorsal metodológica desta pesquisa. Mais do que ferramentas ou softwares específicos, o HBIM e o SIG implicam modos de olhar para a documentação coletada como um conjunto de dados e propriedades inteligíveis, para além de sua representação gráfica abstrata. Eles permitem padronizar a documentação de elementos construtivos e urbanísticos históricos, ao mesmo tempo representar a diversidade de soluções técnicas e formais, e submeter o conjunto de dados coletados a análises quantitativas.
O inventário crítico de práticas construtivas históricas é um instrumental capaz de apontar uma variedade de direções nas quais pode se dar a expansão do “alvo” da sustentabilidade. À semelhança do objeto desta pesquisa — os contextos edilícios tradicionais cuja ordem emergente buscaremos evidenciar —, o procedimento de elaboração do inventário procede, à medida do tratamento das fontes, por adaptações recorrentes do seu modelo de classificação. Essas adaptações serão mediadas pelo instrumental analítico dos estudos morfológicos urbanísticos e arquitetônicos.
A constituição do acervo documental necessário a qualquer análise será, portanto, nossa primeira e principal preocupação. Levantamentos arquitetônicos existentes se encontram dispersos em arquivos e, por vezes, em publicações variadas. O desafio metodológico consiste em sistematizar os dados extraídos desses levantamentos, de modo a torná-los comparáveis entre si. Essa sistematização compreende duas etapas interdependentes: a elaboração de ontologias classificatórias e a representação dos objetos da pesquisa por meio dessas ontologias. Assim, a leitura analítica das fontes documentais e dos levantamentos gráficos e cartográficos conduz à identificação de padrões espaciais e construtivos, que por sua vez empregaremos para organizar o material pesquisado.
As três escalas que configuram nossa abordagem do objeto correspondem, também, a três categorias de ferramentas de apoio ao processamento do universo documental e gráfico. Na escala do parcelamento urbano, utilizaremos Sistemas de Informação Geográfica (SIG) para identificar padrões de dimensões lineares e de proporções de lotes recorrentes, associando-os às configurações arquitetônicas que eles comportam. O instrumental teórico da morfologia urbana, tal como concebido na escola morfológica italiana, permite extrair desses padrões identificados na cartografia os processos de crescimento, consolidação e reforma do tecido das cidades.
As tipologias espaciais nas edificações estudadas podem, igualmente, ser analisadas por meio do SIG para evidenciar relações dimensionais e posicionais entre ambientes. Tais relações são codificadas pelas ferramentas da sintaxe espacial, tendo especial pertinência na escala da edificação os grafos de profundidade e os mapas de visibilidade.
Os padrões construtivos, que evidenciam a persistência e a transformação de práticas profissionais e de modos de organização das cadeias produtivas vernáculas, podem ser documentados graficamente e por meio de modelos digitais tridimensionais. Para além da forma dos componentes da edificação, estes modelos devem conter metadados que identifiquem materiais empregados, procedimentos construtivos e, onde pertinente, sucessivas adaptações e alterações no tecido edificado. O estado da arte da pesquisa em construções históricas está atualmente voltado para o emprego de sistemas de Historic Building Information Modeling (HBIM). No HBIM, a representação tridimensional da edificação serve como suporte para a inclusão de informações semânticas, mas também para a modelagem e avaliação de cenários e prognósticos.
A documentação detalhada de algumas edificações representativas será a oportunidade de avaliar a viabilidade geral de métodos e boas práticas em levantamento físico não invasivo e fotogrametria digital. Buscamos validar um protocolo de documentação baseado em equipamentos de baixo custo e software livre, que permitam replicar e ampliar o universo documental, bem como oferecer fundamentos instrumentais para pesquisas futuras.
Os resultados alcançados em cada escala de análise devem ser interpretados de modo sistêmico, atentando para as relações entre o substrato urbanístico portante, as configurações espaciais e edilícias realizáveis nos padrões de parcelamento do solo observados, e a materialização construtiva desses espaços arquitetônicos. As aproximações e divergências eventualmente verificadas no universo de objetos a serem documentados oferecerão os indícios para elaborar taxonomias de sistemas edilícios tradicionais.